Sonhei certa vez que conhecia o Inferno.
Aqui está o relato de tão inusitada viagem.
***
Estava caminhando alegramente por uma colina verdejante e eis que me deparei com uma imensa estátua de Baphomet em um pedestal. Era uma estátua muito bonita, de mármore, com linhas perfeitamente talhadas.
Aproximei-me para contemplá-la e notei que havia algo de diferente em seus olhos. Um brilho forte e esverdeado, talvez?
Resolvi tocá-la. Foi a pior coisa que poderia ter feito.
A estátua levantou-se de seu nicho ruidosamente. Pedaços do mármore destacado rolaram a um canto, uma fumaça cinzenta tomou conta do local e Baphomet, imponente, abriu a boca em um rugido ensurdecedor.
Paulo, O Bode. |
Eu estava em choque.
- Olá, humana, como vai? - disse ele quando me notou - Meu nome é Paulo, o Bode.
Paulo. O Bode. É claro.
- Como você me acordou, creio que seria interessante te levar para um passeio - disse Paulo, o Bode enquanto coçava sua barbicha - Gostaria de conhecer o Céu ou o Inferno?
- Oi? - eu disse, completamente sem saber o que dizer.
- Inferno será, então. Muito mais divertido.
Paulo deu, então, dois passos de distância do que outrora fora seu pedestal e um enorme elevador brilhante apareceu no local. Suas portas eram de plástico transparente e seu contorno de madeira bonito, mas havia um não-sei-quê de algo velho e desleixado. Talvez fosse a sujeira nos cantos, a camada de poeira do chão ou a aranha que descansava tranquilamente no sulco esquerdo do teto.
Ou talvez fosse o senhor maltrapilho de barba emaranhada que se encostava em uma das paredes. Uma chave pendia de seu pescoço.
- Salve, Pedrão! - disse Paulo - Vamos descer.
- Mas ela não está morta - disse o senhor.
Ufa!
- Ah, é só um passeio matinal. Vamos lá.
Entrei no elevador e começamos a descer. As portas transparentes mostraram terra, a princípio, e então um novo mundo surgiu diante de mim.
Debaixo de um céu cinzento com um quê de tempestade, milhões de casinhas coloridas amontoavam-se em encostas numa versão giga(dan)tesca de Valparaíso. Bandeirolas de festa junina e luzes pisca-pisca estavam penduradas entre as construções mais próximas e havia um enorme palco preto no meio de uma praça com fontes e estátuas de demoninhos. Pessoas sorridentes caminhavam pelas ruas de paralelepípedos que subiam até se perderem de vista e artistas de rua faziam uma perfomance estranha com pernas-de-pau e malabares. Havia música vindo de todos os cantos.
Valparaíso. Ou meu Inferno. |
- Bem-vinda ao Inferno! - disse Paulo, O Bode.
Eu estava embasbacada. Aquilo era definitivamente o contrário de tudo o que eu e o resto da humanidade algum dia imaginou sobre o Inferno.
- Vou te contar como as coisas funcionam por aqui. As pessoas recém-falecidas chegam por esse mesmo elevador que você pegou e fazem uma fila naquele guichê ali do lado - disse Paulo apontando para uma construção de pedras pintada de amarelo logo à esquerda do elevador - para resolver onde irão morar no período que precisarão passar por aqui.
- Período? - perguntei - Mas não é por toda a eternidade?
- É, é. Mas o que vocês chamam de eternidade não dura “para sempre” - respondeu o Bode fazendo sinal de aspas com as mãos - É apenas um período muito longo para vocês, humanos, coitados, conseguirem compreender. Se compreendessem a totalidade do tempo, minha cara, o cérebro de vocês escorreria derretido pelos seus ouvidos.
Isso fazia sentido. Só de estar ali o meu cérebro estava, realmente, quase escorrendo pelos meus ouvidos.
- Pois bem - continuou Paulo - as casas aqui no Inferno são divididas por zonas. Tem a Zona da Inveja - disse, apontando para uma das encostas - a Zona da Preguiça, a da Ganância, etc - continuou apontando para outros lados - E elas são subdivididas em outras categorias menores. Infelizmente temos um problema de superpopulação nas zonas da Luxúria e da Gula, a maioria dos recém-falecidos prefere ficar por lá.
Justo. Eu também prefiro. Ou na da preguiça, talvez.
- Senhor Paulo! O senhor voltou! Finalmente, senhor Paulo! - gritou então um homenzinho de óculos de contador e pequenos chifres na testa - Temos um problema na área dos…
- Já te falei, Sebastião - interrompeu o Bode - para me chamar de Paulo, o Bode.
- Ah - disse o homenzinho, perdendo completamente as palavras - Sim, senhor Bode. Senhor Paulo. O Bode. Senhor Paulo, o Bode.
- Assim está melhor. Diga-me, o que foi dessa vez?
- Estamos com um problema na área dos novatos da Luxúria. Parece que um daqueles apareceu lá de novo, se aproveitando da sua ausência.
- Mas eles não se cansam? Francamente. Bem, receio que você terá que fazer esse tour sozinha, cara humana - disse Paulo olhando para mim - Volte ao elevador quando o ponteiro maior chegar ao dez - continuou, entregando-me um relógio de pulso verde. O ponteiro estava no número oito - Pedrão te levará de volta para o Plano do Meio se eu não estiver aqui para acompanha-la. Mas não se atrase, ou as coisas podem ficar difíceis para você.
E Paulo, o Bode, foi-se atrás de Sebastião, deixando-me ali com mil perguntas na cabeça e um cérebro quase derretido saindo pelos ouvidos.
Resolvi, então, conhecer mais de perto o tal do Inferno. Caminhei por vielas coloridas, encontrei alguns conhecidos que nem imaginava que poderiam estar mortos e dancei uma dança maluca com dois pelicanos verde-amarelos. Dei uma passada rápida na zona da Luxúria porque, bem, por que não, né?, mas só para ver como era, claro, bem de leve, sabe, bom, então. Infelizmente demorei-me um pouco mais do que esperava por ali por motivos de sim, e quando saí faltava-me apenas meia-hora para o ponteiro do relógio que Paulo, o Bode, havia me dado chegar ao dez.
- Hora de voltar - pensei, dirigindo-me para a parte central do Inferno mais uma vez.
Quando eu estava no meio do caminho, porém, notei uma rua estreita que terminava em uma pequena escadaria de mármore e que eu não havia percebido na ida.
- Nossa, um lugar novo! Vá explorar, Carol! - disse minha Curiosidade dando pulinhos de animação dentro da minha cabeça.
- Carol. Você só tem meia hora. É melhor voltar - argumentou minha Prudência, séria, cruzando os braços na minha cabeça.
Obviamente minha curiosidade ganhou da minha prudência e decidi subir a tal escadaria de mármore.
- Não era tão grande quanto imaginava - pensei, quando alcancei o topo depois de apenas alguns degraus - EITA PORRA!
O alto da escadaria dava em um lugar completamente diferente do que eu vira até então. Havia um edifício que se parecia muito com o prédio da Faculdade de Economia e Administração da USP e, na frente, o pátio da faculdade com um jardim milimetricamente ordenado e bancos de cimento quadrados dispostos ao redor. E em um desses bancos estava sentada minha grande amiga que hoje em dia mora na China e que também escreve neste blog lendo um livro.
O "Céu". |
- Tati? - gritei - O que cê tá fazendo aqui? Você morreu?
- Não sei também - ela me respondeu, levantando-se e vindo na minha direção - Mas ao que tudo indica, isso aqui é o céu.
- Sério? Nossa. O Inferno é bem mais legal. Vem pra esse lado!
Nesse momento apareceram quatro seres vindos sabe-se lá de onde vestidos com pesadas vestes cinzentas, asas, e com a cara do Alan Rickman quando interpretou o Professor Snape nos filmes do Harry Potter e a seguraram.
- Vá embora, Carol. Eles são os anjos. Pelo jeito, eu não posso descer aí.
- Nossa - respondi, chocada - Se você não estiver morta de verdade, reveja sua vida pra não ir parar aí depois, heim!
- Com certeza! - ela me respondeu.
Ainda um pouco em choque com o que tinha acabado de acontecer, desci as escadas e olhei no relógio.
- Dez minutos! Ai, caralhos! - praguejei enquanto corria desembestada até o centro do Inferno.
Cheguei ao elevador exatamente quando o ponteiro do meu relógio alcançou o dez.
- Muito bem, Senhorita-Que-Não-Está-Morta-E-Veio-Só-Para-Um-Passeio-Matinal - disse-me o ascensorista Pedrão - Vou te levar pra casa.
Entrei no elevador e, finalmente, acordei.